Prático Fábio Fontes (Foto: arquivo pessoal)

JP: Como surgiu o seu amor pelos navios e pela Marinha Mercante?

Fábio: O meu amor por navios, pela Marinha Mercante e pelo mar é algo de inexplicável. É como a pessoa que nasce apaixonada por coleção de selos, outros nascem com outros hobbies, mas eu, por incrível que pareça era um menino de seis, sete, oito anos e já pensava em navios, já gostava de navios. Quando meu pai me levava para passear aos fins de semana de bicicleta e íamos para a ponta da praia, que é um bairro aqui em Santos por onde os navios passam, eu já naquela época ficava fascinado quando via passando um cargueiro daqueles enferrujados, que hoje chamaríamos de “navio Tramp”. Naquela idade já me apaixonei por navios, e gostava toda vez que via numa revista. No segundo grau, meu pai sempre insistia que eu deveria fazer Escola Naval ou Colégio Naval e eu sempre dizia: “mas eu não quero, a minha fissura, a minha paixão são aqueles navios cargueiros enferrujados” coisa de jovem, naturalmente.

“A minha fissura, a minha paixão, são aqueles navios cargueiros enferrujados”

No finalzinho de 1957 eu sai de Santos, fui para o Rio de Janeiro sozinho, era um garoto com 18 anos. Assim que cheguei à cidade apenas com minha malinha,sem meu pai, sem minha mãe e sem ninguém, absolutamente sozinho, eu pedi para que um taxista me orientasse, pois eu queria ficar num hotel que não fosse coisa cara, pois precisava ficar muitas semanas hospedado. Hospedei-me em um hotel na Lapa durante algum tempo, fiquei lá sozinho e estudava o dia inteiro. Saía na hora do almoço, comia num restaurante por perto e voltava. À noite saia para fazer um lanche e voltava para o hotel, e retornava os estudos. Eu estava me preparando para fazer o processo seletivo da Escola. Já estando no Rio há alguns meses, retornei para Santos, mas logo estava de volta ao Rio. No início do ano fiz o exame de admissão e fui aprovado em 19º lugar, entrei como P119. Iniciando a vida cheio de gás, cheio de entusiasmo. E aí, aquartelamos, vieram os uniformes, carimbos, aquela coisa toda… E eu adorava… Eu sempre fui um camarada muito chegado a disciplina, regras e hierarquia. É do meu feitio pessoal ser assim, e pra mim foi fácil essa adaptação. Mas eu sofri muito do chamado Banzo, você imagine, eu, um jovem de 18 anos, ali no pé de casa, do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, dos meus amigos, na minha  cidade pequena de Santos e de repente eu me vejo no Rio de Janeiro, uma cidade gigantesca onde não tinha tido tempo de fazer amizades, sozinho. E então a Escola começou. Foi bom porque era todos uma juventude mais ou menos da mesma idade e até hoje nós nos encontramos uma vez por ano. A chamada turma, Estado da Guanabara que é a minha turma de Marinha Mercante. O comandante do corpo de alunos, era o Capitão de Fragata Jarbas Andréa Bramont, ele era um oficial rigoroso com os jovens. Mas foi bom, valeu a pena porque ele nos disciplinou. A vida é feita de horários, hierarquia e precedência, de respeito, de disciplina e eu não consigo entender a vida de outra forma. E depois de aquartelados na escola, fui me enturmando e um dos colegas me chamou para passar os fins de semana na casa dele, pois eu não tinha família no Rio, ia raramente para Santos, e sofria muito do banzo, a falta que sente da família. E isso te persegue, você pensa na família o dia inteiro, mas a alternativa era estudar, estudar e cumprir toda a rotina da escola.

JP: Fale um pouco sobre o início da sua carreira.

Fábio: Minha carreira até se tornar prático foi simples, e como tinha uma classificação boa na Escola, me formei em 11º lugar, era uma turma de quase 100 alunos e se formaram cerca de 80. Sou da turma do professor Adilson Coelho, (atualmente, Adilson Coelho leciona uma matéria chamada Técnica de Transporte Marítimo e já há mais de 30 anos leciona na EFOMM.) meu colega de turma de classe, gosto muito dele. E então como eu tinha uma classificação alta, não fui para o Lloyde, e não sabendo se fiz certo ou errado preferi ir para a Fronape. Fiquei muito anos navegando, fui terceiro piloto, segundo piloto, primeiro piloto, imediato e tive aí alguns comandos interinos. Em 1965 fui fazer o curso para primeiro piloto na escola. Em 1968 eu não consegui a bolsa da Fronape para fazer o curso de cabotagem.  E em casa eu fiquei estudando para fazer como candidato estranho, que era o sistema da época, ou você fazia o curso, ou apenas se apresentava para fazer as provas no final do ano letivo.

JP: Por que o senhor decidiu fazer o concurso da praticagem ?

Fábio: Por uma razão muito simples, eu casei muito cedo, já com meu primeiro salário de oficial e aí viajei alguns anos, muito, muito, muito, quase não parava. Cada vez que eu chegava ao Rio de Janeiro, minha mulher me recebia com as nossas crianças de banho tomado, roupinha arrumada, impecavelmente trajados, sapatinho branco com meias, todos arrumadinhos. Eu morava no Flamengo, na rua Marquês de Abrantes, e  pegava as crianças para passear no aterro do Flamengo. Não tinha tanto “bandido” naquela época, estou falando de 1964 e então eu caminhava com eles, tirava muitas fotografias. Eu tinha laboratório de fotografia em casa, eu mesmo processava as fotos, e esse sempre foi o hobbie que me acompanhou a vida toda e até hoje eu tenho uma forte adesão. Então eu via aquelas crianças maravilhosas e pensava “meu Deus do céu, isso é vida?’’ Eu amava a minha profissão de oficial de náutica, mas eu me questionava se iria ficar o resto da vida nisso. Via minha família por alguns dias e passava meses fora, naquela época tinha-se apenas vinte dias de férias por ano, o resto de todos os outros dias eram embarcados. E, eu já com alguns anos de casado, já chegando aos trinta anos, e me casei com vinte e dois. E aos vinte e nove anos, me aborreci na Fronape, pedi demissão e fui para o Lloyd Brasileiro. Lá eu pude passar um bom tempo viajando para o exterior, fui para o Estados Unidos, Europa, tudo quanto é lugar, pois o Lloyde tinha várias linhas. E aí um belo dia, senti a necessidade de acompanhar a educação dos meu filhos e querer desfrutar  a companhia da minha mulher, que era uma mãe e dona de casa maravilhosa, mulher linda, leal, dedicada, educada, mulher simples. Decidi então que queria mudar de vida e me interessei pelo concurso da praticagem. E então, eu estando embarcado em Santos, no navio Cabo Orange, um “cargueirinho” pequeno. Um dia eu chorei no ombro de um prático, que eu nunca vi na vida, que havia embarcado lá pra atracar o navio e eu não sabia nem quem era. Ele veio manobrar, achei simpático. Eu disse a ele que precisava largar daquela vida longe da família, que eu não conseguia acompanhar meu filhos mas eu nunca sabia quando iria ter um processo seletivo para a praticagem e disse a ele se poderia me avisar com antecedência quando soubesse dos concursos, pois como fazia muitas viagens longas, já sabendo a data, poderia me programar. Então peguei um cartão de visita meu e coloquei todos os meu detalhes pessoais, endereço e cep. Morava no Rio de Janeiro na época e ai deixei com ele o meu cartãozinho, ele fez a manobra, agradeci e nos despedimos. E nunca mais eu vi este homem. Mas depois veio se tornar um grande amigo meu, se chamava Frederico Bento Souza Júnior, grande prático de Santos, muito habilidoso. Também oficial de náutica, assim como eu. Passou o tempo, eu nem lembrava mais dele, e viajando para lá e para cá, até que um belo dia esse navio que eu estava encostou para fazer uma quienal, que era uma revisão geral, docagem e ficava dois a três meses no porto fazendo tudo que precisava. E eu fiquei no porto também, estudando para fazer a cabotagem. Até que chegou um telegrama dele me avisando que abriria o processo seletivo mas não sabíamos a data ainda.

Navio Petroleiro Arcadia I (Foto: arquivo pessoal do prático)

JP: Comente um pouco sobre como foi sua preparação para o processo seletivo da praticagem.

Fábio: Era mais ou menos março de 1968, e eu já começando a estudar para a cabotagem, com férias acumuladas, resolvi vir para Santos e abandonei tudo, abandonei emprego, emendei todas as férias que tinha e fiquei em casa estudando. Avisei a minha mulher que iria ficar em Santos para estudar. Mas tive um dificuldade, meu pai estava na Europa, foi viajar com minha mãe. Então fui procurá-lo, pois precisava de apoio e dinheiro, afinal, parei de trabalhar para estudar. Com muita dificuldade consegui falar com ele, e recebi suas instruções para falar com meu irmão que tinha autorização para movimentar a conta de nosso pai. E meu pai disse: “filho, não precisa mais trabalhar, abandone tudo e se tranque ai em casa e só estude, pois o exame seletivo para prático é muito difícil.’’ E então tirando esse peso da consciência, pois foi uma grande ajuda que meu pai me deu, disse para a minha esposa, só me ligue quando precisar de dinheiro, e logo depois passou um mês, eu fiquei por Santos e logo meu pai chegou e disse, “fique aqui e o que precisar de dinheiro para a subsistência de sua família, eu garanto! Mas fique aqui trancado, estudando.’’

Eu com aquele monte de livros que trouxe do Rio de Janeiro e abandonado o curso que estava fazendo para a cabotagem, e nem tirei a carta, fui até primeiro piloto. E estudava muito, mas sabia apenas que a prova seria no fim do ano ou no começo do ano seguinte. Estando ainda no mês de abril, eu fiz um cálculo até o final do ano no mês de dezembro e peguei toda a matéria do currículo que era mais simples do que hoje, hoje está muito mais sofisticado. Mas eu dividi o currículo e fiz um fluxograma de modo que para cumprir aquilo tudo eu deveria estudar quinze horas por dia. E então comecei a estudar quinze horas líquidas por dia. Parei de ver televisão, não lia mais jornal e nem revistas, não atendia telefone. Eu só fui botar o pé na rua no dia de fazer a prova, eu não saia pra ir ao cinema, não saia pra nada, nada. Fiquei em casa trancado estudando todos os santos dias, sábado, domingo e feriado. Acordava 0320 toda a madrugada, passava uma água no rosto, 0330 eu estava sentado estudando, mas ía dormir as 2130. E aí, eu sentava na escrivaninha e das 0330 da madrugada até as 0730. Descia para tomar café. Mas esse período de madrugada era a hora que eu mais avançava no estudo, rendia muito. E então eu fiz uma frase lapidar, bonitinha. Naquele tempo tinha o monógrafo. E eu escrevi com ele assim “Audaces Fortuna Juvet .” Esta frase significa que a sorte só ajuda os corajosos, os audaciosos.

“Audaces fortuna juvet”

Já era casado com três filhos, queria poder viver perto da minha mulher e dos meus filhos, com toda paixão que eu tinha pela navegação astronômica, pela minha profissão de oficial de náutica tive que abrir mão para ficar perto da família, o que foi minha força motriz. O acerto com a família foi o seguinte: a cada um mês e meio minha família vinha para Santos por três dias e com relação ao dinheiro, meu pai provia tudo de forma que eu levava uma vida modesta. No mês de janeiro, em 1969, fui para a prova. Depois de todas as instruções dos sargentos e oficiais, ao olhar a prova, percebi que sabia tudo. No dia 16 de janeiro, era o dia do aniversário da minha mãe, e todos estavam de férias em Santos, enquanto eu estava  no Rio resolvendo meus acertos burocráticos. Fui à companhia telefônica ligar para a minha mãe, e ao falar com ela, ela estava chorando. Perguntei o que houve e ela disse que ligaram da capitania dos portos procurando por mim, e que eu tinha sido aprovado em primeiro lugar na prova escrita e o capitão dos portos estava impressionado com meu desempenho na prova e queria me conhecer pessoalmente. Voltei logo no dia seguinte para Santos e me apressei em me apresentar ao Capitão dos Portos. Chegando lá, o Comandante Henrique de Mendonça Kusel me recebeu. Mais tarde se tornou almirante e adido naval em Washington.

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Aluno do 3º ano de náutica da EFOMM, Vice Presidente do Grêmio Evangélico, Diretor e monitor do Grêmio de Náutica e Repórter do Jornal Pelicano. Sou grato e alegre por fazer parte desta Equipe. Welcome on Board !