Nossa aventura começou em janeiro de 2014, na cidade de Frederikshavn, ao norte da Dinamarca, onde fica situada a universidade Maritime and Polithecnic College (MARTEC). Antes de continuar, porém, gostaria de voltar um pouco no tempo para que todos entendam a origem e o propósito desta viagem.

Em meados de 2013, ocorreu, no Centro de Instrução Almirante Graça Aranha (CIAGA), o Seminário Brasil-Dinamarca, destinado a promover uma maior interação entre os dois países no meio marítimo. Foi nessa ocasião que o Exmo. Sr. Diretor de Portos e Costas, Vice-Almirante Cláudio Portugal de Viveiros, assinou um acordo com aquela universidade para o envio de 4 praticantes brasileiros à viagem número 101 do training ship Danmark. Marcada pela travessia da Linha do Equador e pela vinda ao Brasil, ela seria dividida em duas etapas: um período de 6 semanas na universidade dinamarquesa para preparação e realização dos cursos básicos e outro de 3 meses a bordo de um dos veleiros mais antigos do mundo, que ainda navegam.

Voltando à pequena e fria cidade de Frederikshavn, Ian Costa (CIAGA), Érika Holanda (CIABA), Raphael Coelho (CIABA) e eu tivemos apenas alguns dias para conhecer o lugar e aproveitar a neve. Um dia antes do início do curso já fomos apresentados aos outros 76 trainees, em sua maioria jovens dinamarqueses vindos do ensino médio, seja para iniciar uma brilhante carreira na Marinha Mercante ou, como descobriríamos mais tarde, para viver a liberdade que só o mar proporciona.

Trainees correm no frio da cidade dinamarquesa de Frederikshavn. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
Trainees correm no frio da cidade dinamarquesa de Frederikshavn. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Nas semanas desse primeiro período, nossas manhãs e tardes foram preenchidas com aulas de desenho gráfico, fabricação mecânica e solda. À noite nos dedicávamos a cursos de segurança e salvatagem, navegação, ISPS Code, entre outros. Ressalto aqui que todos eles foram essencialmente práticos o que contribuiu muito para o nosso aprendizado. O curso de combate a incêndio, por exemplo, foi realizado em 3 exaustivos dias, nos quais cada trainee esvaziou, no mínimo, 6 cilindros de ar em diversos tipos de exercícios. Já o de salvatagem aconteceu no porto da cidade com a temperatura próxima a 0°C – na ocasião, obviamente, todos nós vestíamos roupa de imersão.

Os finais de semana eram reservados para instruções de preparo ao embarque. Tínhamos aula de nós e voltas e realizávamos um treinamento físico intenso o que, é claro, nos seria essencial, no navio. Sem dúvida essa experiência foi uma das mais divertidas, apesar de todo sofrimento, afinal, no Brasil, não estamos acostumados a correr na neve.

Veleiro-escola Danmark sem as velas estendidas. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
Veleiro-escola Danmark sem as velas estendidas. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Terminado o período de preparação, após uma breve pausa de 5 dias, viajamos todos para Lisboa, onde o Danmark encontrava-se atracado. Dizem que a primeira impressão é a que fica. Contudo, mesmo parecendo maravilhoso no cais, as lembranças que temos dele, na verdade, são de momentos menos tranquilos com suas 25 velas todas içadas passando por lugares que nunca poderíamos imaginar um dia conhecer. Já na primeira semana, ainda em Lisboa, vimos que a rotina a bordo seria bastante agitada com instruções, serviços, manobras com as velas, reconhecimento dos cabos e tudo mais. E logo seguíamos rumo à Ilha de Madeira estando nosso preparo até ali prestes a ser colocado em prova.

No veleiro, todos os trainees foram divididos em 4 grupos, ou “quartos”, para que começassem as aulas e a rotação nos serviços. Nós dormíamos, comíamos e tínhamos aula no mesmo compartimento, chamado de berthdeck. Eram dois deles com 40 trainees em cada.

A dinâmica imposta era intensa: ao acordar, por exemplo, devíamos dobrar e guardar nossas redes (Isso mesmo, dormíamos em redes!) para, então, limparmos o local e prepará-lo para o café, que era servido, geralmente, das 7 às 8h. As aulas começavam às 9h e terminavam às 17h com apenas 1 hora de pausa para almoço e mais dois intervalos. Dependendo do dia, tinham também mais algumas horas dedicadas à limpeza, que era realizada de manhã e à tarde. Além disso, um dos grupos ficava responsável pelo serviço diário, que incluía trabalhar na cozinha, na manobra das velas, ficar de vigia, timoneiro, praça de máquinas, auxiliar do oficial de navegação e outras tarefas. Sem contar que tínhamos, ainda, os night watches ou quartos noturnos – toda madrugada acordávamos para que o navio pudesse prosseguir navegando com segurança.

Trainees estendem cabo no veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
Trainees tensionam cabo no veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Madeira havia chegado e com ela nossa primeira prova a bordo: devíamos saber a posição exata de todos os 259 cabos bem como suas funções. Pelo menos seguiam uma lógica, o que tornou a tarefa um pouco mais fácil. Chegaram, também, os tão sonhados licenciamentos, que eram muito regrados: saíamos uniformizados e tínhamos até as 22h para estar de volta ao navio, o que não impediu de conhecermos os lugares mais atrativos da ilha. Na partida, mais um treinamento de salvatagem: com nossas roupas de imersão, saltamos do castelo de proa, nadamos até a popa e, através de uma balsa, voltamos para bordo. Lembrando que o mar estava calmo e o bote de resgate na água para caso alguém precisasse de ajuda.

O caminho para Fortaleza, nosso próximo destino, seria bem mais longo: 18 dias; e cada vez mais o cenário mudava. Deixávamos o frio europeu para sentir o calor tropical, que era muito bem-vindo, diga-se de passagem. E com ele algumas boas surpresas, também: peixes-voadores, baleias ao longe e a mais magnífica atuacão da natureza que eu já tenha presenciado: um grupo de golfinhos. Quando fui alertado falaram em 15 ou 20 animais. Subimos correndo para o convés e ficamos, todos, reparando. Eles vinham com as ondas, em pequenos grupos, e passavam por baixo do nosso casco. Estavam em todas as ondas que nossos olhos alcançavam, pelo menos as que víamos por boreste. Alguns poucos saltavam e davam piruetas, como se estivessem felizes com a nossa presença. E foi assim por 10 ou 15 minutos. Não posso falar um número exato, só tenho certeza que foram centenas deles, na verdade, um verdadeiro espetáculo.

Veleiro-escola Danmark navega com velas estendidas. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
Veleiro-escola Danmark com velas estendidas. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Atravessar a Linha do Equador foi uma aventura a parte, porque recebemos algumas visitas ilustres a bordo. Porém não quero falar muito desse assunto, afinal, não é uma ideia muito boa provocar o Rei Netuno, principalmente para um navegante. Aqueles que têm “água salgada correndo nas veias”, como diria o Professor Sidnei, saberão do que estou falando. Aqueles que não têm ideia do que se trata, espero que um dia passem por essa experiência.

Apesar da calmaria de alguns dias, a região equatorial trouxe verdadeiros dilúvios – sem muito vento, é verdade, como se fossem chuvas de verão. Todos nós encarávamos isto como um tremendo desafio e, até diversão, de certo modo, ter que subir e guardar as velas, seja na primeira ou na última verga, que ficava a cerca de 30 metros do convés principal, durante os night watches. Sem contar que, como me lembrara uma vez uma das quartermasters, a pessoa responsável pelos trainees durante o serviço, a luz da lua era mais do que suficiente para fazer todo o trabalho lá em cima.

"Trainees" sobre as vergas do veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
“Trainees” sobre as vergas do veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Após mais alguns dias, chegamos em Fortaleza. Ficaram todos impressiona- dos com a grandiosidade da cidade. Lembro aqui que a Dinamarca, como um todo, possui pouco mais de 5 milhões de habitantes. Aproveitaram muito as praias, principalmente, o paraíso de Canoa Quebrada. Mas logo já estávamos navegando novamente e, dessa vez, com o vento bem diferente: não mais pela popa, como havia sido na costa da África em direção ao hemisfério sul, mas sim por boreste, o que nos fez de certa forma dar uma pequena “volta” até chegarmos ao Arquipélago dos Açores, nosso próximo destino.

Em um dia ensolarado e muito calmo, recebemos a notícia que o comandante havia permitido que nadássemos. Em pleno Oceano Atlântico, a uma pro- fundidade de 2 a 3 mil metros, poderíamos, simplesmente, saltar da borda e aproveitar alguns instantes dessa “maluquice”, como diriam muitos. O motor foi desligado, o bote de resgate mais uma vez foi arriado, vigias extras foram escalados e, então, a aventura começou: cada grupo teve cerca de meia hora para aproveitar como quisesse, nadando, saltando da borda ou apenas tirando fotos. Seja por efeito da adrenalina ou até mesmo da felicidade, acho que ninguém parou para pensar no que poderia estar embaixo de nós.

"Trainees" posam sobre redes de proa do veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
“Trainees” posam sobre redes de proa do veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Logo antes de chegar no arquipélago, onde a fauna é muito rica tivemos outra surpresa: um grupo de baleias passou por nosso bombordo. Algumas pessoas alertaram, mas a maioria não conseguiu vê-las de imediato, afinal elas estavam no sentido oposto ao nosso. Nesse momento eu estava de timoneiro e não conseguia ver muita coisa até que, de repente, o oficial de serviço chegou e começou a virar o timão desesperadamente. Sem saber o que acontecia, o ajudei sem pensar duas vezes. Logo depois, ficou claro o que acontecia: ajustamos nosso rumo com o delas. Foi um momento mágico para o navio. Todos, literalmente, pararam seus afazeres e, em um completo silêncio, observaram aqueles imensos animais em sua trajetória imponente e compassada.

Ao chegarmos em Açores, o frio já tinha voltado. Estávamos na parte final da viagem, aulas quase terminando e provas chegando. Mas mesmo assim aproveitamos a beleza das ilhas: fizemos um bus tour com paisagens belíssimas, restaurantes típicos e até mergulho, para aqueles que possuíam a certificação.

Nossa próxima cidade seria Randers, a primeira dinamarquesa em nossa rota. Contudo, não sei se por capricho da natureza ou se por vontade do co- mandante, os ventos nos levaram mais para noroeste do Canal da Mancha. O comandante, parecendo não ter pensado muito, anunciou que faríamos uma breve parada de dois dias em Bantry Bay, na Irlanda. A cidade seria uma velha “amiga” do navio, o que pudemos confirmar depois com todo o carinho que recebemos. O que mais nos impressionou foi a maritimidade daquela minúscula cidade, além, é claro, dos famosos tons de verde irlandeses.

"Trainees" brasileiros Érika, Stersi, Ian e Raphael posam com banddeira do Brasil em frente ao veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)
“Trainees” brasileiros Érika, Stersi, Ian e Raphael posam com banddeira do Brasil em frente ao veleiro-escola Danmark. (Foto: PON Stersi / Arquivo Pessoal)

Os dias seguintes seriam totalmente diferentes daqueles que passamos no Atlântico, na maioria das vezes sozinhos, sem terra por perto. Estávamos adentrando o Canal da Mancha, com sua neblina e agitação características. Às vezes, tínhamos 5 ou mais grandes navios a vista, principalmente, quando passamos pelas proximidades do porto de Rotterdam. E cedo chegamos a Randers.

Para nossa surpresa e muita alegria uma multidão nos aguardava. Não somente os parentes dos trainees dinamarqueses, mas, também, moradores daquela cidade, que, raramente, tinham a oportunidade de ver o Danmark atracado em seu porto. Logo no primeiro dia aberto para visitações, recebemos mais de 1500 pessoas a bordo.

Passamos, também, por Copenhagen, onde recebemos ilustres pessoas a bordo, inclusive, o príncipe dinamarquês Joaquim, “patrono” do navio. Os dias em Kategart – o mar que banha a Dinamarca – foram bem tranquilos e lentos, afinal, queríamos aproveitar ao máximo nossas últimas horas de navegação, pois logo estaríamos em Frederikshavn, onde tudo começara. Prepararíamos o navio durante uma semana e o entregaríamos ao estaleiro. Nossa old lady precisava de cuidados especiais.

No último dia de viagem ocorreu a tradicional cerimônia de entrega dos certificados. Além da sensação de dever cumprido, veio também o sentimento de despedida daqueles que veríamos tão pouco a partir dali. Primeiramente, da viagem em si, mas, principalmente, dos amigos e do nosso navio, que nos acolheram tão bem.

VITOR STERSI OLIVEIRA Trainee #25 – Danmark 2014


Entre janeiro e fevereiro desse ano, o Jornal Pelicano, em colaboração com o PON Stersi, editou a série de reportagens “Relatórios Danmark“. Em 4 relatos escritos durante o estágio na MARTEC, antes de embarcar no veleiro para a viagem de 3 meses, o praticante contou sobre a estrutura da Escola dinamarquesa, visitas a fabricantes de motores e sobre as experiências de preparo para o embarque. Confira!

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Segundo Oficial de Náutica e Membro Honorário do Jornal Pelicano e Grêmio de Vela e Remo. Foi aluno da EFOMM entre 2013 e 2015, Adaptador-aluno, Atleta da Equipe de Natação, Monitor dos Grêmios de Náutica e Informática, Escritor e Vice-presidente do Jornal Pelicano.