Entrevista – Especial – Paulo Leopardi, um dos fundadores do Jornal Pelicano

O Jornal Pelicano, carinhosamente, teve a honra de entrevistar o Sr. Paulo Leopardi, um dos fundadores do Jornal Pelicano. Leopardi era aluno do curso de Máquinas da Escola de Marinha Mercante do Rio de Janeiro (EMMRJ), da turma de 1962. Contribuiu para o Jornal sendo datilógrafo, da época. Sua turma, recentemente voltou ao CIAGA para o Jubileu de Ouro.

Nessa edição das entrevistas com o Jornal Pelicano, trazemos uma matéria especial. O Sr. Paulo Leopardi, ex-aluno da turma de 62, nos surpreendeu com um entusiástico relato sobre os seus gloriosos dias de Escola de Marinha Mercante. Editamos o mínimo possível, procurando deixar as palavras do Sr. Leopardi transportarem os leitores para o distante Rio de Janeiro da década de 60.

JORNAL PELICANO – O senhor é turma de 1962, quando ainda era EMMRJ. Conte-nos como era a instituição àquela época.

PAULO LEOPARDI – A minha turma é a de 62, senão me engano a quarta turma formada na então “jovem” Escola de Marinha Mercante do Rio de Janeiro (EMMRJ), já que os antigos formandos vinham da “Escolinha Walita”, que era a escola do Lloyd para formação de oficiais de máquinas, náutica, e etc…

Entramos dia 26 de março de 1962, uma manhã calorenta. Atravessamos o perfumoso canal de Maria Gandu (ou Gadu) e fomos recepcionados “calorosamente” pelos veteranos. Tudo era novidade, a Escola em si, os novos colegas , alguns já conhecidos de cursinhos, mas a maioria era do oriunda do Brasil inteiro, de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas, Rio Grande do Sul, do Nordeste, Pará e Amazonas.

Naquela época, nosso uniforme era igual ao da Marinha de Guerra: calça, camisa de colarinho e bibico cinzas, e gravata preta! Imagine no calor do Rio o desconforto que este uniforme causava! No ano de 1964, foi alterado, com camisa de manga e calça na cor cáqui, e caxangá! Horrível, mas era o que se apresentava para o momento.

Camarotes 135 e 136 confraternizando na foto. Agachados, da esquerda para direita: Murilo, "Boliche", Duilio e "Tamba". Atrás: Mendes, "Passarinho", Leopardi e Muniz "Pau-de-Velha" Mais atrás: Andradinho e Toledo "O Grosso"
Camarotes 135 e 136 confraternizando na foto. Agachados, da esquerda para direita: Murilo, “Boliche”, Duílio e “Tamba”. Atrás: Mendes, “Passarinho”, Leopardi e Muniz “Pau-de-Velha”. Mais atrás: Andradinho e Toledo “O Grosso”. (Foto: Paulo Leopardi / Acervo Pessoal)

Fizeram a distribuição de camarotes separados por turmas, máquinas com máquinas, náutica com náutica, comissários idem… No meu camarote, que ficávamos em 4, 2 virados para a Alameda Alegrete e os 2 do fundão para as quadras, houve uma defenestração… Eu, Duílio que é Chefe de Máquinas, “Passarinho”, idem, que está na Transpetro, e Mendes, também Chefe, que morreu no acidente no Golfo do México, no navio Maria da Penha, que fundeou erroneamente, por falta de carta náutica mais atualizada, sobre gasodutos… o ferro garrou na tubulação do gás que, após muito esforço, rompeu-se. Houve uma explosão e morreram 7 pessoas, entre elas o Mendes, meu colega, e, se não me engano, o 1º Piloto “Pinóquio”, e o restante era da guarnição…. Eu fui buscar a esquife do meu amigo Mendes em Viracopos… foi tétrico!

A Escola era, para os padrões da época, bem cuidada. Só tinha os prédios dos camarotes, das salas de aula, e o prédio da guarnição. O restante era tudo muito arborizado com amendoeiras (que aqui em “Sampa” chamamos de chapéu-de-sol), e, onde hoje fica a sala de comando, tinha um imenso lago, entrecortado por coqueiros anões e muito bem cuidado e limpo. Os camarotes eram bem espartanos, não tinham chuveiro elétrico, os móveis eram de ferro, assim como as beliches e mesas, e as cadeiras eram de madeira. No começo, o barulho do movimento da avenida Brasil incomodava. O cheiro do canal e também do Cortume Carioca que existia lá pelas bandas da Penha ou Olaria, idem. Todavia, todos foram esquecidos rapidamente.

Superior - Leopardi, um pouco desequilibrado, cortando no Vôlei Inferior esquerdo - Coaraci, Laerte Portão, Mendes e Leopardi na proa do Escaler Inferior direito - Bandinha da Escola de uniforme Alexandrino em 11 de junho de 1964;
Superior – Leopardi, um pouco desequilibrado, cortando no Vôlei. Inferior esquerdo – Coaraci, Laerte Portão, Mendes e Leopardi na proa do Escaler. Inferior direito – Bandinha da Escola de uniforme Alexandrino em 11 de junho de 1964. (Foto: Paulo Leopardi / Acervo Pessoal)

O dia a dia era muito intenso. Acordávamos na Alvorada com a “boca de ferro” e um “apitinho” (clarim, ou algo parecido) às 0600. Havia um pequeno desjejum às 0630 e logo depois seguíamos para a Educação Física às 0700. Tínhamos aula com o professor Varady, Paulo, e nas turmas mais recentes, com o ex-árbitro de futebol, Arnaldo Cesar Coelho. Eu, como era muito participativo, fazia parte das equipes de vôlei e remo. Às 0800 formávamos para o Cerimonial à Bandeira, e das 0900 às 1200 tínhamos nossas aulas teóricas. Após o almoço, às 1300, tínhamos que aguentar mais 2 horas de aula. Imaginem? Termodinâmica com Álvaro Cachaça, ou “Aula de Nózinho” (Arte Marinharia) com um fuzileiro naval… Não era mole não.

Por volta das 1600, voltávamos aos esportes. No meu tempo, tínhamos somente uma quadra para futsal e outra para vôlei e basquete, além do campo de futebol. Após o Cerimonial da Bandeira ao pôr do sol, jantávamos e seguíamos para o “estudo obrigatório”.

JORNAL PELICANO – Como era a formação mercante na época da EMMRJ?

Tínhamos muita informação teórica. Prática era pouquíssima

PAULO LEOPARDI – O ensino era rigoroso. O Departamento de Ensino, que na minha época era comandado pelo Comandante Fischer, um submarinista, acompanhava “pari-passu” todas as notas de todos alunos! Para mim isto era novidade, novíssima! As matérias todas eram muito teóricas. Somente fui ver uma turbina à vapor, aberta, quando já estava praticando e em um outro navio que estava atracado em nossa popa em Santos…Tínhamos algumas aulas práticas na Ilha do Mocanguê que pertencia à Cia. Costeira, depois ficando com o Lloyd e hoje pertencendo à Marinha do Brasil. A gente procurava se safar ao máximo do exame oral (avaliação oral sobre os temas pertinentes a profissão) que era um verdadeiro massacre da serra-elétrica. Eu cheguei a ter febre sem estar doente em véspera de exame oral de Resistência dos Materiais com o prof. Walfrido! Eu tinha ciência que se levasse pau no oral, se caísse para 2ª época (prova final), estava reprovado. “Aluno meu que fica em 2ª época não merece ser aprovado…”. Era mais ou menos assim que Walfrido falava…

Alunos realizando a viagem de instrução, a bordo do navio Custódio de Melo, da Marinha do Brasil (1963)
Alunos realizando a viagem de instrução, a bordo do navio Custódio de Melo, da Marinha do Brasil (1963) (Foto: Paulo Leopardi / Acervo Pessoal)

É claro que hoje vocês tem uma formação “trocentas” vezes melhor que a nossa, que era muito precária. Havia muita, mas muita mesmo informação teórica. Prática era pouquíssima, todavia, a gente se safava depois na praticagem. Ao final de cada ano ocorria a viagem de instrução, mais ou menos de 2 a 3 meses, em um navio da Marinha. O nosso primeiro foi o “Custódio de Melo” e o segundo foi o…esqueci o nome. Bem, não é muito relevante. Na Praça de Máquinas a temperatura girava em torno de 57ºC, vazamento de vapor pra tudo quanto é lado… Honestamente, viagem de instrução era bacana pra gente conhecer e namorar no Nordeste! Isso era muito bacana…

JORNAL PELICANO – Após a conclusão da Escola, qual foi a trajetória do senhor? Conte-nos um pouco sobre sua carreira.

PAULO LEOPARDI – Quando a nossa turma se formou em janeiro de 1965, o baile foi na antiga Princesa Isabel ou Leopoldina, me foge a memória… Foi muito bacana mesmo e, em seguida, embarquei no Lloyd Peru. Afinal, fui pra Marinha Mercante para conhecer o mundo, não tinha interesse em embarcar na antiga Fronape (que até pagava mais que o Lloyd). Porém, as rotas dos navios do Lloyd eram coisa de louco:

FUI PARA A MARINHA MERCANTE PARA CONHECER O MUNDO

Golfo do Mexico, atracava em Tampa, Nova Orleans, Galveston, Baton-Rouge, Houston, Tampico e Vera Cruz. Sendo que em N. Orleans o navio atracava no centro da cidade, na atual Canal Street, perto da Bourbon Street.

Na Costa Leste, praticamente, os portos de Jacksonville, Charleston, Norfolk (a maior base americana e tinha um shopping na Prefeitura Naval com preços excepcionais!), Filadélfia e Nova Iorque, cujo píer ficava no Brooklyn.

Tinha a linha do Mediterrâneo que começava em Oran, depois seguia para Argel, Casablanca, Marselha, Genova, Napoli, Trieste, Split (na antiga Iugoslávia), Constanza, na Romênia, e Varna na Bulgária.

A do mar do Norte, Havre, Antuerpia, Rotterdan, Amsterdan, Bremen e Hamburgo…AH! A melhor linha era da Escandinávia, a mais “piruada”, ninguém pedia férias! Por que será?! Por causa das “espigas”, as suecas, dinamarquesas, norueguesas! São muito lindas e de fácil comunicação! Tenho amigos até hoje que tem filhos com estas moças!

Primeira viagem ao Mar do Norte... Reunidos em uma Choperia de Hamburgo em St.Pauli (1967 ou 1968) Na foto: Leopardi, Avelino (1ON), Cassiano (2OM) ,Misutane, garantia do Ishikawagima, Comandante Mitidieri,Imediato Faustino, Comissário ? e o Chefe de Maquinas Nilo Pigozzi
Primeira viagem ao Mar do Norte… Reunidos em uma Choperia de Hamburgo em St.Pauli (1967 ou 1968)
Na foto: Leopardi, Avelino (1ON), Cassiano (2OM) ,Misutane (garantia do Ishikawagima), Comandante Mitidieri, Imediato Faustino, Comissário (?) e o Chefe de Maquinas Nilo Pigozzi. (Foto: Paulo Leopardi / Acervo Pessoal)

Entre Escola e “empurrando água” eu fiquei quase 10 anos. Pratiquei no Lloyd e na Fronape. Depois de formado, embarquei na Paulista de Navegação (Lloyd Brasileiro) e por último na Netumar que só fazia a linha do Canadá, que eu adorava! Vou ser honesto, a vida de marítimo não é fácil não. Estive num navio caindo aos pedaços, o “Diana”, todavia a tripulação, desde o Comandante ao Moço de Convés, era maravilhosa! A minha praticagem no Lloyd Peru foi péssima! Os maquinistas eram “casca grossa”, não queriam passar informações, tinham medo que você soubesse mais que Chefe ou Sub Chefe. Já no Anchieta, navio motor que pratiquei na Fronape foi “mamão com açúcar”. O Chefe era excelente, o 2º Oficial de Máquinas idem, os colegas excelentes, tenho boas recordações! Tudo depende do pessoal que está embarcado, cada navio é uma história

JORNAL PELICANO – Mesmo após tantos anos de formado, como é o relacionamento do senhor e sua turma? Ainda se reencontram?

PAULO LEOPARDI – Desembarquei, definitivamente, em julho de 1989. Todavia, procurava manter contato com minha turma. Logo depois dos primeiros 10 anos de formados nos encontramos numa Churrascaria em Botafogo, no Rio. Mas depois disso a coisa começou a rarear. Só retomei contato com o pessoal à partir de 2010, quando um colega nosso, Areias, que se formou na turma de 70, creio eu, montou a “Rede Pelicana”. Então nos encontrávamos 2 vezes por ano, em Friburgo, Cabo Frio, Angra dos Reis e agora em Itaipava. É muito bacana porque nestes encontros estão reunidos colegas da Escola Walita, da EMMRJ, e às vezes alguns da EFOMM-CIAGA.

Estivemos agora, neste ano, em meados de janeiro, participando do Jubileu de nossos 50 anos de formados. A Marinha nos recepcionou de forma elegante e brilhante. Ficamos muito emocionados! Pena que pouquíssimos colegas participaram, uns por falecimento, outros por doença, mas, no geral, foi muito bacana.

Diante da placa comemorativa do Jubileu de Ouro, da esq. para a dir. Mario “baiano” da Silva Cavalcante, Duilio Yacovazzo, Lucival Fernandes, Alte. Aguiar Freire, Paulo R. Leopardi, Luiz Carlos Gonçalves, Wilson Zacharias, Almte. Viveiros, Ari Nunes, Amaro dos Santos, Luiz Carlos de Pina, Carlos Tadeu Montes e José Carlos Príncipe (
Diante da placa comemorativa do Jubileu de Ouro, da esq. para a dir. Mario “baiano” da Silva Cavalcante, Duilio Yacovazzo, Lucival Fernandes, Alte. Aguiar Freire, Paulo R. Leopardi, Luiz Carlos Gonçalves, Wilson Zacharias, Almte. Viveiros, Ari Nunes, Amaro dos Santos, Luiz Carlos de Pina, Carlos Tadeu Montes e José Carlos Príncipe. (Foto: Comunicação Social / CIAGA)

JORNAL PELICANO – O senhor foi um dos precursores do Jornal Pelicano. O que o levou a introduzir na Marinha Mercante um Jornal feito por alunos e para alunos?

PAULO LEOPARDI – Eu era “fera”. Fui mais como um “voluntário de Marinha”, já que era bom na máquina de datilografar, coisa que vocês nem sabem que existiu. Se não me engano, éramos pouquíssimos colegas: Príncipe, Gmeiner, Coutinho (hoje cartunista Caulus) e mais outros nos reuníamos. Fazíamos uma pauta só de gozação com os colegas. Passávamos no mimeógrafo e distribuíamos as folhas no rancho. Era o maior sarro! Alguns colegas ficavam irados, outros levavam na brincadeira… Mas não tínhamos estrutura nenhuma! A não ser 1 ou 2 máquinas de datilografar, mais nada!

JORNAL PELICANO – O que o senhor teria a acrescentar para o nosso Jornal?

tirem o máximo que puder da efomm

PAULO LEOPARDI – No patamar que vocês estão, não tenho nada a acrescentar. Somente louvar que vocês são abençoados por estar numa Escola ultra-moderna que está dando uma formação de 1º mundo à cada um de vocês. Isso é o mais importante: tirem o máximo que puderem da EFOMM em termos de educação, cultura, relacionamento interpessoal… Amanhã vocês verão que isto foi muito útil. Abrações e que Deus os protege e ilumine.

O Jornal Pelicano agradece pela disponibilidade do tempo do senhor Paulo Leopardi para tirar essas dúvidas e pela oportunidade de mostrar que o nosso passado, presente e futuro devem estar sempre conectados.

Confira algumas fotografias que Leopardi compartilhou conosco: