A segunda entrevista da série do Jornal Pelicano, foi realizada com 2º Oficial de Náutica (2ON) Isabella Costa. Pernambucana de 30 anos, oriunda do Centro de Instrução Braz de Aguiar (CIABA), da Turma de 2007, Isabella é um belo exemplo de mulher bem sucedida, e de como são vastos os ramos de atuação profissional de um oficial de marinha mercante. Advogada, com especialização em Direito Marítimo, nesta entrevista, conta um pouco de sua história e carreira e carreira marítima, além das possibilidades de se trabalhar em terra.

Jornal Pelicano – O que te influenciou a ingressar na Marinha Mercante?

Isabella Costa – Eu Iniciei um cursinho quando terminei o 3° ano do ensino médio, porque queria fazer concursos militares. Então fiz a prova do ITA, da EFOMM e EEAr, passei nas duas últimas em 2004. Na minha época o teste psicológico tinha que ser feito em Belém, eu resido em Recife, então tive que me direcionar pra fazer o teste no CIABA,  quando cheguei lá, me encantei pela Escola. E foi assim que eu tive uma noção de como era o trabalho a bordo de navios, porque até então, eu não sabia que havia brasileiros trabalhando em cargueiros.

Como foi seu tempo na EFOMM?

Quando cheguei lá, eu fui como primeira colocado do primeiro ano, e pra mim tudo era muito novo, até por que eu não era de Escola Militar e não sabia como funcionava o militarismo. Na adaptação a gente tem noções e aprende a parte militar, então foi muito difícil pra mim, não vou mentir, eu chorava todos os dias, e por ser muito nova, não sabia dos desafios que eu iria enfrentar. Mas a escola fez com que me torna-se uma mulher mais forte, guerreira, persistente, que corre atrás dos sonhos, objetivos, sabe enfrentar obstáculos e lidar com pessoas. Foi um grande ensinamento, uma lição de vida. Tudo que sou hoje, metade vem dos ensinamentos, caráter e profissionalismo que fui construindo desde a Escola.

Isabella em 2007, então aluna do terceiro ano de náutica da EFOMM. (Foto: Arquivo Pessoal/ Isabella Costa)

Além disso tenho boas recordações do que é viver independente em outra cidade, sem estar com os pais por perto, dos amigos de turma, conversar e fazer tudo em grupo. E também foi na escola que conheci meu esposo, que também é oficial mercante e trabalha hoje na Odebrecht, numa plataforma sonda de perfuração.

Como foi seu período de praticagem? 

No meu último ano (de EFOMM) algumas empresas faziam uma prova com os alunos, eu fiz da TRANSPETRO e da LOG IN. Mas queria muito trabalhar em navio conteneiro, por ter feito algumas pesquisas no decorrer do ano, sobre o tipo de navio e modal que eu queria trabalhar. Então eu acreditava que iria me adaptar a LOG IN, que faz transporte de contêineres. Passei na prova, me formei em dezembro de 2007, fizemos mais uma semana de Aspirantex (estágio a bordo de navios militares) e em janeiro de 2008 comecei minha praticagem.

Com isso me apaixonei pela parte de contêineres, pelos desafios, dinamismo nos portos e peguei tripulações excelentes, me senti acolhida em todos os navios, graças a Deus nunca tive problemas a bordo. Sei que existem muitos problemas, com mulheres principalmente, mas graças a Deus nunca tive nenhum tipo de problemas e considero que toda minha carreira foi muito boa.

sua carreira no mar?

Comecei na LOG IN, depois da praticagem, como oficial, posteriormente fui para a NORSKAN OFFSHORE. Na LOG IN trabalhei nos navios conteneiros, Frota Santos, LOG IN Pantanal e LOG IN Amazônia. Já na NORSKAN trabalhei num AHTS (Norman Borg), em seguida um SUPPLY e depois no Skandi Santos. Sequencialmente fui pra V-SHIPS, na P74 (plataforma), trabalhei na BW, no navio BW Borg (gaseiro) e também alguns trabalhos de prova de mar, pelo Estaleiro Atlântico Sul.

Passou por alguma situação de emergência ou perigosa durante a carreira?

Passei na LOG IN. Foi uma situação na qual o comandante tinha caído, tivemos que fazer uma arribada (escala num porto não programado), porque  ele estava desacordado. E uma outra na NORSKAN, como eu trabalhava com manuseio de âncora num AHTS, estávamos fazendo a retirada de âncora, de uma plataforma, e ela puxou um gasoduto, rompeu ele e quase aconteceu um acidente com a embarcação. Teve que ser aberto um inquérito na Capitania dos Portos de Macaé, inclusive eu fui com o comandante (estrangeiro) e o imediato, para poder fazer a tradução e relatar os fatos. Acredito que foram só essas duas situações perigosas pelas quais passei.

Passou por alguma situação constrangedora ou preconceituosa, a bordo, pelo fato de ser mulher?

Nunca passei por uma situação constrangedora, nem preconceituosa por ser mulher. Mas tive dificuldades numa embarcação, devido ao choque de culturas com a tripulação. Até por que a gente sabe que existem muitas embarcações estrangeiras, na qual o comandante e o imediato são estrangeiros, mas nada muito grave que não pudesse ser resolvido.

Além de marítima, você também é casada com um marítimo. Como conseguiram conciliar o relacionamento, com as respectivas escalas de trabalho?

Conheci meu esposo na Escola, sendo que a gente só veio a ter um relacionamento no período de Praticagem. Era difícil porque no início não conseguíamos conciliar as escalas, nos encontrávamos a cada 1 mês e meio, por 10 ou 15 dias, depois ele voltava a embarcar, ou eu. Fizemos de tudo pra que o relacionamento desse certo, não foi fácil, mas hoje eu não me arrependo e acredito que meu esposo também não se arrepende de ter tentado. E hoje temos uma família , graças a Deus, unida e feliz.

Fica mais fácil compreender o trabalho dele, o tempo que ele precisa estar trabalhando, fazendo cursos, porque antes de ser advogada eu sou marítima. Então meu filho entende essa ida e volta do pai, pra gente já é comum, não é uma tristeza, na verdade ele está indo fazer o trabalho dele, mas já volta. Acho que fica mais fácil quando se é marítimo entender o trabalho do companheiro.

É possível uma mulher ser mãe e manter sua carreira a bordo de navios?

Sim. Eu tive meu filho em 2010, permaneci embarcada até agosto de 2012, e não tive dificuldades. Claro que é triste deixar o seu filho pequeno (em casa), mas eu tinha a minha mãe que cuidava dele, porque meu esposo também embarcava. Quando tivemos nosso filho conseguimos conciliar nossas escalas, embarcávamos e desembarcávamos no mesmo período, em uma escala offshore de 28×28 (dias).

Quanto a manter a carreira depende muito. Eu abdiquei da minha carreira por causa do meu filho, pois estava vendo a necessidade dele ter a minha presença, então resolvi parar quando ele tinha 1 ano e 6 meses. Mas conheço muitas mulheres que tem filhos e embarcam, então se elas conseguem, pode ser possível. Tudo depende da mulher, até porque existem outras profissões em que também é preciso se abdicar do lar, não é só o marítimo. Creio que dá pra conciliar, mas aí é de cada uma. Eu para poder parar cheguei a um consenso com meu esposo, pra poder cuidar do nosso filho e fazer algo para que pudesse continuar trabalhando nessa carreira, não mais embarcada, mas tentar não sair e aproveitar todo o conhecimento que tive na escola.

Por quanto tempo você embarcou? E qual a máxima função atingida a bordo?

Eu embarquei de 2008, como praticante, terminei a praticagem em 1 ano. Iniciei como 2ON na LOG IN em 2009, até agosto de 2012, de forma contínua. De forma esporádica ainda fiz alguns embarques, pelo Estaleiro Atlântico Sul (EAS), fazendo provas de mar de navios, como o Machado de Assis e Abdias do Nascimento.

Isabella no passadiço da embarcação Skandi Santos. (Foto: Arquivo Pessoal/ Isabella Costa)

As mulheres da sua Turma de EFOMM ainda trabalham a bordo de navios mercantes? 

Está bem dividido. Das meninas que se formaram comigo, uma parte não embarca mais e outra ainda continua. Sobre não embarcar mais, acredito que oportunidades foram surgindo. Na minha turma existe eu como advogada, engenheiras (maquinistas que fizeram outra graduação), empresárias, inspetoras navais, oficias de marinha, enfim, as oportunidades surgiram, elas foram aproveitando e hoje trabalham em terra.

Por que decidiu ingressar na área de Direito Marítimo?

Na verdade depois que parei de trabalhar (embarcada) em agosto de 2012, fui chamada pra trabalhar no sindicato (SINDMAR), sendo que eu já tinha interesse em cursar direito, tanto que comecei a faculdade em agosto de 2012, até por que eu passei por uma situação desagradável na minha gravidez. Como não existia uma legislação específica para categoria, e a empresa na qual eu trabalhava não tinha acordo coletivo, onde constava uma cláusula que amparava as marítimas gestantes, eu tive alguns direitos meio que rechaçados. Então fiquei com aquilo na cabeça, depois daquela situação, foi isso o que me impulsionou, além do desejo de poder ajudar.

Sobre direito marítimo, foi justamente a coincidência com a minha profissão. Eu terminei a faculdade, passei na OAB, fiz pra direito do trabalho, passei, e depois uma especialização em direito marítimo. Atualmente faço mestrado em direito e negócios internacionais, em uma universidade da Espanha. Eu gosto muito do trabalho com a parte de carga, da área de transporte marítimo, com a parte de porto, tudo isso me fascina, então pra não deixar a minha primeira formação, resolvi agregar. Foi a melhor opção que eu fiz, porque consigo unir a parte prática e técnica com a teoria, o que é muito legal, por isso não me arrependo de ter escolhido o ramo do direito marítimo.

Quais são as possibilidades de atuação de um oficial de marinha mercante nesse ramo? E que qualificações ele deve obter para ingressar?

É muito abrangente, porque a gente vem de uma Escola de Formação onde, praticamente, se estuda direito internacional, todas as legislações do direito marítimo internacional e nacional, por isso temos um estudo muito amplo. Nós estudamos a teoria pra depois colocá-la em prática, então vindo pro ramo do direito é uma gama muito grande de trabalho que um oficial de marinha mercante, fazendo direito, pode alcançar. Ele pode trabalhar em portos, pra armadores, na parte de transporte marítimo carga (importação/exportação), em agências marítimas, empresas multinacionais que trabalham com essa parte de transporte marítimo, enfim é muito amplo.

Eu conheço vários oficiais mercantes que são especialistas na área de direito marítimo e são grandes nomes dentro do mercado, como J. Haroldo dos Anjos, Osvaldo Agripino Júnior, Leven Siano, Wellington Beckman, Leonardo Soares, Gerson Ramos e o comandante Wesley Collyer, enfim todos eles são grandes nomes do direito marítimo e eu estou conseguindo chegar nesse patamar que eles estão. É meu sonho, por onde me guio, pelo trabalho que eles fazem hoje no mercado de direito marítimo, portuário e comércio exterior.

Você também atuou como delegada regional do SINDMAR, qual era exatamente a sua função nesse posto?

Eu fui delegada regional do SINDMAR em Recife, entre outubro de 2012 e abril de 2016. Na verdade eu não busquei isso, houve um convite de um delegado que já representava aqui em Recife. Como sempre ia no sindicato procurar saber de providências e acordos coletivos, procurava saber das informações. E ele soube que eu tinha acabado de desembarcar, e estava estudando direito, me convidou porque existia um cargo em aberto, foi praticamente uma surpresa, jamais imaginava ser delegada sindical. Nesse tempo que passei lá, acredito que fiz um trabalho legal, principalmente com os alunos com as duas escolas (CIAGA e CIABA), tentei aproximar o jovem oficial mercante, o aluno, pra dentro do sindicato. Fazia visitas de alunos, quando estavam de férias, aqui no porto de Suape, pra dentro de navios da MERCOSUL LINE, LOG IN, ALIANÇA, TRANSPETRO, LIBRA, pra conhecer praça de máquinas, passadiço, convés e camarote. E quando eu olhava para os olhinhos de cada um, via que eles estavam fascinados e felizes, por estarem cursando a EFOMM. Então isso me marcava e estimulava a estar sempre fazendo o melhor. Enfim, foi um período muito bacana.

Tem pretensões de voltar a embarcar algum dia?

Na verdade eu ainda embarco esporadicamente. Embarco nos navios do Estaleiro Atlântico Sul, sou contratada temporária, pra fazer parte da tripulação que faz a provas de mar. Além disso quando dá, embarco, se algum comandante me chama, porque ainda estou com meus certificados e documentação toda em dia. Eu acho que só devo algum dia não mais aceitar, quando não conseguir mais manter minhas certificações em dia, mas enquanto der, e o comandante do estaleiro me chamar, eu irei, porque é um ambiente que eu gosto, mesmo sendo arriscado. Você tem que ter atenção, rodar quarto de serviço, mas é fascinante.

Eu digo pra todo mundo: Tudo o que eu tenho hoje, devo à Marinha Mercante!. Agradeço muito a Deus, por ter me guiado a EFOMM, porque foi de lá que eu consegui retirar tudo o que eu tenho hoje, todas as coisas materiais e pessoais. Ainda hoje eu não deixo de estar em contato com a parte marítima, com oficias da Marinha Mercante, e muitos são meus amigos, isso que é o bom, a gente compartilha informações e está sempre a par do que está acontecendo. Além de buscar os direitos, que as vezes são mitigados, e por isso eu tenho um respeito muito grande pela profissão, mas também estou muito feliz sendo advogada e me sinto muito realizada profissionalmente, porque consegui unir essas duas áreas.

Que conselhos daria aos jovens que estão iniciando nessa profissão?

Para os jovens em geral – Aproveitem esse tempo de escola, que um tempo que não volta mais, claro que existem os cursos ,onde você encontra os companheiros os amigos, cursos de aperfeiçoamento e reciclagem, enfim, mas aproveitem o máximo, aprendam o máximo. Porque hoje a gente sabe que a Marinha Mercante está numa situação complicada de trabalho, de demora para o início da praticagem e de abertura de vagas de emprego, mas eu creio que Marinha Mercante é um ciclo, e creio que em 2018 as portas irão se abrir. Tem que estar preparado, fazer os cursos, estar qualificado, pra poder atender os requisitos das empresas. Além do que tem que ter muita garra para se estar a bordo.

Para as mulheres especificamente – Eu sei que hoje em dia, ainda encontramos situações de preconceito e assédio, então não desanimem, por causa desses fatos e não queiram encobrir. Então sejam sempre transparentes, falem as coisas para a empresa, não tenham medo e procurem alguém de confiança para contar. Eu acho interessante estar perto do sindicato, saber das suas ações.

Estou aqui no que vocês precisarem, dúvidas e conselhos, vocês jovens contem com meu apoio e estarei sempre a disposição. Marinha Mercante é uma profissão bonita, que o país depende muito, porque hoje todo o comércio é feito basicamente pela via marítima, então nós somos os profissionais que estão fazendo o mundo girar.

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Praticante Oficial de Náutica. Vice-Presidente do Jornal Pelicano e Presidente do Grêmio de Relações Internacionais da Marinha Mercante durante o ano de 2018.